PROFª Margarida Jansen ENSINO MÉDIO- Filosofia
I – LIBERDADE: ELA EXISTE?
Liberdade - essa palavra
Que o sonho humano alimenta
Que não há ninguém que explique,
E ninguém que não entenda!
Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência.
1 – Determinismo
OS MITOS DE TÂNTALO, PÉLOPS E NÍOBE
Tântalo era um rei rico e famoso em Sípilo, além de ser um dos filhos de Zeus; como tal, era amigo dos deuses e sempre era convidado a comer na mesa deles, no Olimpo. Porém, vaidoso, Tântalo revelou segredos dos deuses aos mortais, roubou o néctar e a ambrosia dos deuses e entregou-os a seus amigos mortais, escondeu um cão de ouro em Creta e, para testar a onisciência dos deuses, cometeu um crime terrível: matou seu próprio filho, Pélops, serviu sua carne na refeição e esperava que os deuses comessem a carne humana.
Os deuses perceberam, ressuscitaram Pélops e castigaram Tântalo da seguinte forma: em um lago, ele ficou preso com o nível da água até o seu queixo, uma sede muito forte o incomodava, mas ao tentar beber a água, o nível dela abaixava e ele nunca conseguia bebê-la. Atrás de Tântalo, belíssimas árvores carregadas de frutas tinham galhos que chegavam sobre sua cabeça, quando ele movimentava-a para cima, um vento forte afastava os galhos cheios de frutas para longe, impossibilitando Tântalo de matar sua fome. Piorando seu sofrimento, ainda havia um rochedo suspenso no ar e localizado acima de sua cabeça, deixando-o com um terrível medo da morte.
Eis o destino de Tântalo por seu crime. Por mais que ele se esforçasse e tentasse em tomar água, esta afastava-se; por mais que ele se esforçasse em tentar comer as frutas, estas também se afastavam; por mais que ele tentasse esquecer do rochedo, ele estava bem acima de si. A sede, a fome e o medo sempre venciam – o destino mostrava-se imutável: era impossível alterar a decisão dos deuses olímpicos.
A vida de Tântalo estava determinada, controlada pelos deuses. Em Filosofia, denominamos de determinismo a idéia de que somos controlados por algo ou alguém, a idéia de que temos um destino, de que ele seja inalterável e que possa estar escrito independentemente de nossa vontade. Tudo o que acontece conosco pode estar previamente definido.
Pélops
Esta idéia de que nossa vida pode estar traçada anteriormente por algo ou alguém, é vista com mais clareza na continuidade do mito: Pélops era o filho de Tântalo, morto por seu pai e ressuscitado pelos deuses, ele apaixonou-se pela princesa Hipodâmia, de Elice. O rei Enômao ouvira de um oráculo que se sua filha se casasse, ele morreria. Para evitar o casamento de sua filha, o rei anunciava uma corrida de carruagem a todos os pretendentes dela: a corrida acontecia de Pisa até o altar de Poseidon, em Corinto, e enquanto os pretendentes largavam na frente, o rei oferecia um carneiro a Zeus. Se o rei alcançasse seu oponente, podia matá-lo com sua lança; caso contrário, o pretendente poderia casar-se com Hipodâmia – assim, muitos já haviam morrido, já que os cavalos do rei, Fila e Harpina, corriam mais velozmente que o vento Norte.
Pélops era mais um concorrente e, antes da corrida, invocou Poseidon, que o atendeu e ofereceu a ele uma carruagem com cavalos alados e rápidos como flechas. Na corrida, mesmo com estes cavalos, Pélops foi alcançado por Enômao. Poseidon soltou as rodas da carruagem do rei, que caiu e morreu enquanto Pélops alcançava a linha de chegada em Corinto. De volta a Pisa, Pélops ainda salvou a princesa de um incêndio do castelo real e, enfim, casou-se com sua amada.
Dizíamos que a idéia de determinismo aparece nesta narrativa mais claramente que na primeira. Basta verificar que a previsão oracular cumpriu-se com todo o seu rigor: como perdeu a corrida, o rei seria morto e, no momento que ele cai da carruagem, a morte apresentou-se fatalmente, tal como estava determinado. No derminismo, não há como alterar o destino imposto pelos deuses: uma vez que o destino do rei era a morte, caso sua filha se casasse, ela mostrou-se fatal, inexorável.
Níobe
Níobe era orgulhosa como seu pai, Tântalo. Como rainha de Tebas, certa vez proibiu as pessoas de fazerem uma homenagem a Leto, Apolo e Ártemis alegando que ela é que deveria ser homenageada por ser filha de Tântalo, neta de Zeus e um de seus antepassados é Atlas. As oferendas foram interrompidas e todos voltaram para casa.
Leto, a deusa do destino, e seus filhos, Apolo e Ártemis, reagiram aos insultos de Níobe e prepararam uma terrível vingança: Apolo acertou, com flechas, cada um dos sete filhos de Níobe, que faziam treinos eqüestres. A notícia se espalhou e Anfíon, rei de Tebas e marido de Níobe, ao saber da notícia, suicidou-se com sua espada. Níobe, acompanhada de suas sete filhas, correu para o campo lamentando a morte de seu marido e de seus filhos; porém, continuou a gritar contra os deuses e considerando-se mais rica. Assim, novas flechas voaram em Tebas e mataram também as suas sete filhas. Sentada diante de seus sete filhos, sete filhas e marido, todos mortos, Níobe ficou paralisada de tanta dor, o vento já não conseguia fazer seus cabelos oscilarem, o sangue petrificou em suas veias: Níobe foi transformada em uma rocha, mas que ainda continuava a chorar. Por fim, uma ventania jogou a pedra pelos ares e a levou até a Lídia, onde Níobe está até hoje em uma montanha, chorando. A deusa do destino vingou-se furiosamente do orgulho de Níobe e sua tentativa de interromper o louvor aos deuses.
Os três mitos acima expressaram algumas características fundamentais da idéia de determininsmo:
- nossa vida é controlada por algo ou alguém, tal como Tântalo controlado pelos deuses no lago;
- não há como alterar o nosso destino, tal como o rei Enômao que não escapou da morte assim que Pélops venceu a corrida de carruagem.
VAMOS FILOSOFAR
1 – Procure no dicionário o significado das palavras abaixo e transcreva-os para cá.
a) destino
2 – Qual foi o crime cometido por Tântalo? Qual foi o seu destino imposto pelos deuses como castigo?
4 – Como Níobe insultou os deuses? Como estes reagiram? Qual foi o destino imposto a ela como castigo?
5 – Desenhe o destino que os deuses reservaram a cada uma das personagens abaixo:
a) Tântalo
b) Enômao
c) Níobe
6 – Os três mitos que estudamos expressaram as características principais da idéia de determinismo? Quais são elas?
8 – Na música abaixo, da banda Titãs, explique qual é o destino da personagem Marvin.
TITÃS - MARVIN |
Meu pai não tinha educação
|
Titãs. Titãs, 1984
PROFª Margarida Jansen ENSINO MÉDIO- Filosofia
2 – Liberdade segundo Sartre: a escolha
Tântalo e Níobe ficaram impotentes diante dos castigos que receberam. Essa impotência de mudar a situação significa ausência de liberdade? Quando não conseguimos conquistar alguma coisa dizemos: “Não somos livres”. Em outras palavras, quando conseguimos sair da situação de impotência, quando vencemos as adversidades, declaramo-nos livres; porém, quando não as vencemos, declaramo-nos não-livres.
Para pensar nesta questão, vejamos o que o filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu. Segundo ele, se estamos diante de um rochedo e este bloqueia nossa passagem, nós tentaremos passar por ele com uma série de técnicas, como a do alpinismo. Mesmo que não consigamos escalar o rochedo, fomos nós quem escolhemos pela escalada, foi a nossa liberdade que optou em ultrapassá-lo. O projeto era escalar, mas se não houve a realização da escalada, não deixamos de ser livres. O que Sartre apontou é que as pessoas não diferenciam o projeto da realização: o fato de não conseguirem escalar o rochedo não significa que não sejam livres, significa que são impotentes. Liberdade não é a obtenção do que se quer, o êxito de uma realização em nada importa para a liberdade.
Suponhamos que você gostaria de ir à festa de aniversário de seu amigo, mas no caminho seu carro quebrou e você talvez não consiga chegar a tempo. O fato de você não conseguir realizar seu projeto (ir à festa) não significa que você não seja livre; significa, somente, que você não consegue vencer a uma adversidade. A liberdade manifesta-se na escolha que você realiza em ir à festa. Em seguida, você escolhe em consertar o carro, mas não sabe; escolhe em procurar um mecânico, mas não encontra. Isto é, escolhe em escapar da adversidade. A liberdade, segundo Sartre, é esta “autonomia de escolha”[1] que independe da realização do projeto: “Minha liberdade de escolher não deve ser confundida com minha liberdade de obter”[2]. Isto é, como fazemos escolhas a todo momento, somos livres e estamos condenados à liberdade.
VAMOS FILOSOFAR...
1 – Ao não conseguirmos realizar um projeto deixamos de ser livres? Explique.
2 – A liberdade é a obtenção daquilo que queremos, segundo Sartre? Explique.
3 – Para Sartre, como se manifesta nossa liberdade? Explique.
|
O exemplo da festa de aniversário foi significativo: somos livres, mas nossa liberdade é exercida em meio a uma situação. O desejo é de chegar à festa; por isso que é doloroso ficar na rua com o carro quebrado, sem utensílios e sabedoria para consertá-lo, pensando na promessa que fiz a meu amigo de que estaria em seu aniversário, sem conseguir escapar do estado de coisas que me foi imposto pelos outros (um carro que não funciona).
A situação, neste caso, é a condição de estar em um lugar que não é a festa, é o fato de conviver com o problema de não cumprir o que foi prometido no passado, de não dominar as técnicas (utensílios) que possibilitariam resolver o problema, de ver o estado de coisas criados por outros não resolver meus problemas. A liberdade não é abstrata, ela é concreta e a expressão de sua concretude é a situação – as escolhas que faço para resolver meus problemas são escolhas situadas, escolhas que têm como objetivo resolver problemas concretos.
O que me faz falta é estar na festa e o meu objetivo, o meu projeto, o meu fim, é chegar a tempo nela. Minha liberdade consiste em fazer escolhas que me levem até a festa, que me tirem do lugar onde estou, com o carro quebrado: o que eu quero é trocar uma situação por outra, superar uma situação e chegar até outra, ir além de uma situação que me incomoda e realizar a que desejo, transcender a atual situação. Em outros termos, o que eu quero é acabar com a atual situação, nadificá-la. Minha escolha pretende colocar um ponto final em meus problemas, exterminá-los. Meu projeto é tornar existente minha presença na festa, torná-la real, enteficá-la, dar ser a ela.
Sartre conseguiu mostrar que nossa liberdade se exerce em situação, nadificando ou enteficando realidades em nome de um projeto que queremos realizá-lo: no problema em questão, trata-se de nadificar a situação de ficar parado com o carro quebrado e dar ser a minha participação na festa – dar fim a uma situação e iniciar outra: “A liberdade, sendo escolha, é mudança”[3].
SARTRE: A LIBERDADE SE EXERCE, EM SITUAÇÃO, PARA TENTAR CUMPRIR UM PROJETO:
VAMOS FILOSOFAR...
1 – Cite quais são os problemas que a personagem do texto enfrenta na situação acima.
2 – Segundo Sartre, a liberdade é abstrata ou concreta? Explique.
3 – Segundo Sartre, exercemos nossa liberdade ao fazer escolhas que tentam cumprir nossos projetos. Qual é o projeto da personagem do texto e o que você faria para cumpri-lo?
4 – Para Sartre, qual é a relação da liberdade com o ser e o nada?
________________________________________________________
5 – Relacionando a filosofia de Sartre sobre a liberdade ao poema da Cecília Meireles, explique porque a liberdade, ao ser uma escolha, leva algumas coisas ao nada e outras ao ser.
Ou isto ou aquilo
|
CECÍLIA MEIRELES. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
4 – Liberdade segundo Sartre: o problema da responsabilidade
“A conseqüência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”[4]. Tal é a conclusão de Sartre, vejamos como a liberdade desembocou no peso da responsabilidade sobre nós.
Sabemos que a idéia de determinismo expressa o controle de nossas vidas por parte de algo ou alguém e a impossibilidade de mudarmos nosso destino. Sabemos também que Sartre recusou a idéia de determinismo e demonstrou que somos nós quem escolhemos nossas ações e, assim, tornamo-nos livres, controlamos nossas vidas e ganhamos a possibilidade de mudá-la. Essa liberdade, como vimos, é situada, condicionada por questões concretas e, ao procurarmos resolver os problemas para realizar nosso projeto, nadificamos uma realidade e tornamos real uma outra.
Como escolhemos, realizamos projetos, acabamos com situações e criamos outras, somos nós os agentes de nossa história e da história da humanidade. Não há algo ou alguém movendo nossas vidas, não há determinismo: não há como responsabilizarmos os deuses por nossos acertos e por nossos erros. Somos nós os responsáveis pelas nossas vidas, já que somos nós que fazemos as escolhas. Se escolhemos em ir à festa, lutamos contra as adversidades e chegamos na mesma, somos os responsáveis por nossa participação; se escolhemos não ir à festa, somos os responsáveis por nossa ausência. A responsabilidade acompanha a liberdade e é inseparável dela.
VAMOS FILOSOFAR...
1 – Para Sartre, podemos responsabilizar os deuses por nossos erros e por nossos acertos? Explique.
2 – Para Sartre, é possível separar a liberdade da responsabilidade? Explique.
3 – Dê dois exemplos de escolhas que você fez, escrevendo as responsabilidades que precisou assumir.
A – TEXTO COMPLEMENTAR
LIBERDADE E FACTICIDADE: A SITUAÇÃO
“(...) O coeficiente de adversidade das coisas, em particular, não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, porque é por nós, ou seja, pelo posicionamento prévio de um fim, que surge o coeficiente de adversidade. Determinado rochedo, que demonstra profunda resistência se pretendo removê-lo, será, ao contrário, preciosa ajuda se quero escalá-lo pra contemplar a paisagem. Em si mesmo – se for sequer possível imaginar o que ele é em si mesmo -, o rochedo é neutro, ou seja, espera ser iluminado pro um fim de modo a se manifestar como adversário ou auxiliar. Também só pode manifestar-se dessa ou daquela maneira no interior de um complexo-utensílio já estabelecido. Sem picaretas e ganchos, veredas já traçadas, técnica de escalagem, o rochedo não seria nem fácil nem difícil de escalar; a questão não seria colocada, e o rochedo não manteria relação de espécie alguma com a técnica do alpinismo. Assim, ainda que as coisas em bruto (...) possam desde a origem limitar nossa liberdade de ação, é nossa liberdade mesmo que deve constituir previamente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quis as coisas irão manifestar-se como limites. Mesmo se o rochedo se revela como ‘muito difícil de escalar’ e temos de desistir da escalada, observemos que ele só se revela desse modo por ter sido originariamente captado como ‘escalável’; portanto, é nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar depois. (...) O ser dito livre é aquele que pode realizar seus projetos. Mas, para que o ato possa comportar uma realização, é preciso que a simples projeção de um fim possível se distinga a priori da realização deste vim. Se bastasse conceber para realizar, estaria eu mergulhado em um mundo semelhante ao do sonho, no qual o possível não se distingue de forma alguma do real. Ficaria condenado, então, a ver o mundo se modificar segundo os caprichos das alterações de minha consciência, e não poderia praticar, em relação a minha concepção, a ‘colocação entre parênteses’ e a suspensão de juízo que irão distinguir uma simples ficção de uma escolha real. Aparecendo desde o momento em que é simplesmente concebido, o objeto não seria nem escolhido nem desejado. Abolida a distinção entre o simples desejo, a representação que posso escolher e a escolha, a liberdade desapareceria com ela. Somos livres quando o último termo pelo qual fazemos anunciar a nós mesmos o que somos constitui um fim, ou seja, não um existente real, como aquele que, na suposição precedente, viria a satisfazer nosso desejo, mas sim um objeto que ainda não existe (...)”.